Desde 1500, doenças trazidas pelos brancos foram responsáveis por dizimar populações tradicionais no território brasileiro. A história liga um sinal de alerta diante de uma pandemia. Em Santo Antônio do Içá, na divisa do Amazonas com a Colômbia, foi registrado o primeiro diagnóstico de covid-19 entre indígenas, uma agente de saúde, de 20 anos, da etnia kokama.
O médico Douglas Rodrigues, coordenador do Projeto Xingu, da Escola Paulista de Medicina (EPM/Unifesp) explica que a vulnerabilidade não se dá por diferença no organismo, já que, “para esse vírus, que é novo, índio, branco e preto é tudo a mesma coisa”. A questão é a vulnerabilidade social, que tem a ver com a forma de viver nessas comunidades, e a dificuldade de acesso ao sistema de saúde.
“Do ponto de vista biológico, o corpo dos índios é igual ao de qualquer pessoal, eles têm um sistema imunológico muito potente. O risco tem a ver com o contágio, é característica dessa doença o índice de transmissibilidade muito elevado”, esclarece o professor. “A vida deles é comunitária, moram muitas pessoas na mesma casa e eles compartilham redes, panelas, tudo”.
Com esse cenário, o médico sugere que, assim como idosos, imunodeprimidos e moradores de favelas, os indígenas deveriam ser considerados grupo de risco e protegidos prioritariamente pelas políticas governamentais.
Governo inerte, comunidades mobilizadas
Frente à inércia do Estado, os próprios grupos se conscientizam e se mobilizam contra a ameaça. O sociólogo Pedro Rapozo, da Universidade do Estado do Amazonas, afirma que “há uma preocupação e um processo de organização política e social. Eles têm produzido cartilhas informativas, em parceria com as universidades, na língua materna de cada comunidade, com os protocolos sugeridos pela Organização Mundial da Saúde”.
Há, em âmbito federal, um órgão específico para a saúde indígena, vinculado ao Ministério da Saúde, que é a Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), mas, segundo Rapozo, sua atuação ficou em segundo plano. “Não fosse a mobilização das associações nacionais e da frente parlamentar em Brasília chamar atenção para a necessidade de construção de uma política governamental, ela nem aconteceria”.
Ele acrescenta que a dificuldade de organização é maior dada ao sucateamento pelo qual passou a Funai nos últimos anos. “A Funai teria um papel muito importante nesse processo de mobilização e informação, mas tem enfrentado uma fragilização administrativa pelo atual governo”.
O Estado do Amazonas, por sua vez, tem realizado políticas em parceria com os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) e com as universidades locais, que tem boa capilaridade no território extenso e complexo. “Nosso diálogo com a Secretaria de Desenvolvimento, Ciência e Tecnologia propiciou a construção de uma Nota Técnica, que traz preocupações com a maneira como o governo deve proceder ao executar as medidas de segurança”.
Estados |
Confirmados |
Óbitos |
Letalidade |
Acre |
943
|
33
|
3.50%
|
Alagoas
|
1703
|
89
|
5.23%
|
Amapá
|
2046
|
56
|
2.74%
|
Amazonas
|
9243
|
751
|
8.13%
|
Bahia
|
4301
|
160
|
3.72%
|
Ceará
|
12304
|
848
|
6.89%
|
Distrito Federal |
1906
|
34
|
1.78%
|
Espírito Santo
|
3568
|
145
|
4.06%
|
Goiás
|
1024
|
45
|
4.39%
|
Maranhão
|
5028
|
291
|
5.79%
|
Mato Grosso
|
379
|
13
|
3.43%
|
Mato Grosso do Sul |
288
|
10
|
3.47%
|
Minas Gerais
|
2605
|
97
|
3.72%
|
Paraná
|
1627
|
101
|
6.21%
|
Paraíba
|
1493
|
92
|
6.16%
|
Pará
|
5017
|
392
|
7.81%
|
Pernambuco
|
9881
|
803
|
8.13%
|
Piauí
|
949
|
30
|
3.16%
|
Rio de Janeiro
|
13295
|
1205
|
9.06%
|
Rio Grande do Norte
|
1574
|
72
|
4.57%
|
Rio Grande do Sul |
2050
|
87
|
4.24%
|
Rondônia
|
943
|
33
|
3.50%
|
Roraima
|
932
|
13
|
1.39%
|
Santa Catarina
|
2917
|
59
|
2.02%
|
Sergipe
|
998 |
23
|
2.30%
|
São Paulo
|
37853
|
3045
|
8.04%
|
Tocantins
|
351
|
9
|
2.56%
|
Atividades ilegais em terras demarcadas colocam indígenas em risco
A Secretária Executiva de Ciência, Tecnologia e Inovação do Amazonas, Tatiana Schor, relata que as organizações indígenas rapidamente se mobilizaram, mas ressalta a grande diversidade que há entre os grupos étnicos: “a gente precisa pensar quanto tempo de contato tem esse grupo com nossa sociedade, se tem terra demarcada, e qual o fluxo com os núcleos urbanos”.
Ela cita como exemplos os índios matís, de Atalaia do Norte, que entraram em contato no final dos anos 70, e ficam quase que exclusivamente dentro da terra indígena, enquanto os sateré-mawés, embora tenham terra indígena demarcada, circulam entre várias cidades como Manaus, Parintins e Barreirinhas. “São realidades muito diferentes, e a política de saúde deve levar em consideração esses critérios”.
A grande preocupação, segundo ela, é com a atividade ilegal que se desenvolve nessas terras. “O garimpo não parou, pelo contrário, o que a gente ouve é que a atividade na fronteira está ‘bombando’. Na terra indígena do Javari, onde tem maior número de índios com pouco contato, há um fluxo de ilegalidades muito grande, de madeireiros, garimpeiros e caçadores. Minha esperança é que esses grupos habituados a manter distância da sociedade moderna agora que mantenham mesmo o máximo de isolamento possível”.
O médico Douglas Rodrigues destaca que o isolamento é trunfo contra o contágio, mas que “essa autossuficiência dos indígenas se fragiliza na medida que os territórios diminuem e são degradados”. Mesmo em áreas maiores, há ameaça de introdução da doença pela atividade criminosa. “E aí tem um problema inverso”, aponta, “quem está mais perto da cidade tem acesso mais fácil ao sistema de saúde, caso precisem de hospitalização, enquanto quem está isolado fica prejudicado”.